A nova lei de abuso de autoridade aprovada pela Câmara, dentre outras novidades, pune como crime a velha prática aristocrática do “Você sabe com quem está falando”.
A lei é para todos, mas alguns se acham superiores a ela. Uma servidora pública do Departamento de Trânsito do Rio de Janeiro foi constrangida no exercício da função por um juiz de direito.
A agente, que estava trabalhando em uma blitz, chegou a receber voz de prisão e quase foi algemada simplesmente por estar atuando de acordo com o que diz a lei.
O magistrado, que estava conduzindo um veículo sem placas e com nota fiscal de compra com prazo vencido, entendeu que poderia se beneficiar do status de autoridade para livrar-se de uma ocorrência.
Contrariado por ser tratado como todos perante a lei, ele respondeu aos berros, chamando-a de “abusada” e ordenando sua prisão. Quando abordada, a agente do Detran respondeu: “Ele não é Deus”.
O desfecho da história foi lamentável no Rio de Janeiro: o Tribunal de Justiça, em um ato corporativista, condenou a funcionária pública a pagar R$ 5 mil de multa por abuso e danos morais.
Ou seja, ela foi punida por aplicar a lei contra um indivíduo que possui privilégios por causa de sua posição social.
Para corrigir este tipo de situação ultrajante, a Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira (14), em caráter de urgência e em votação simbólica, o Projeto de Lei nº 7596/2017, que tipifica situações de abuso de autoridade cometidas por agentes do serviço público e membros dos três poderes da República, do Ministério Público, das Forças Armadas e dos tribunais e conselhos de conta.
O PL já havia passado pela Casa em 2016 e foi ao Senado Federal para ajustes. Retornando, o texto passou sem alterações e será encaminhado ao Palácio do Planalto para a sanção do presidente da República.
Está na caneta do chefe do Executivo a decisão de não atrapalhar o aprimoramento republicano assim como a civilização dos costumes no Brasil, tornando-o menos hierarquizado e arcaico, dominado pela crença de que descumprir a lei compensa, que somos o país da impunidade e que não somos iguais perante a Constituição.
Enquanto a desigualdade racial, social e econômica açoita os brasileiros, uma minúscula parcela de abastados persiste em ir contra os princípios éticos e morais que regem as nossas leis. O caso da agente de trânsito é apenas um entre os vários que acontecem diariamente.
Espera-se que com a nova legislação sobre abuso de autoridade, que deve ser sancionada pelo Presidente, esse tipo de manifestação nefasta e inescrupulosa não se repita. Onde houver abuso, que o cidadão possa estar municiado da Lei para garantir os seus direitos.
Assim, poderemos dar fim a uma tradição carregada de vícios, preconceitos e privilégios, que se estabeleceu no país desde o período colonial e que favorece descaradamente uma camada de 0,1%.
Nenhuma autoridade pode ser cerceada em suas atividades. Mas também não podemos ser tolerantes com o abuso. O que queremos é um novo modelo de gestão democrática, com transparência e justiça e que nossa democracia seja marcada pela efetiva igualdade de todos perante a lei.
LUIZ FLÁVIO GOMES*, professor, jurista e Deputado Federal. Estou no f/luizflaviogomesoficial. WhatsApp: (11) 99261-8720
*Com a colaboração de Lécio Luiz Gomes Junior
20 Comentários
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Dr. Luiz Flávio Gomes, o meu comentário só vai repetir aquilo que muitos Advogados, Delegados de Polícia e servidores públicos vêm dizendo nos sites jurídicos sobre essa lei : faltou transferir a competência para processar e julgar autoridades para o Júri Popular. Senão, como muitos dizem, é uma lei "natimorta". Há cerca de cinquenta anos estava em vigor a anterior lei de abuso de autoridade e quantos foram punidos com fundamento nela ? E também faltou acabar com a EXCLUSIVIDADE do Ministério Público para a denúncia. Aliás, isso deveria ser revisto para todos os crimes. continuar lendo
Ótimo texto, Dr. Luiz Flávio Gomes! Mas ouso olhar para o outro lado da moeda.
É certo que autoridades, como essa citada no exemplo, precisam cumprir a lei, e precisa acabar com a famosa "carteirada". No entanto, acredito que esta lei corre sérios riscos de desvirtuamento, servindo como uma espécie de cabrestos, principalmente ao Poder Judiciário.
O Poder Executivo (digo, os ladrões de terno) não sabem mais como se esconderem. Certamente veremos essa lei ser aplicada nos investigações aos colarinhos branco, pois é certo que esta lei não foi criada para APENAS o bem do cidadão.
Agora, precisar criar uma lei que diga, basicamente, que os poderosos também precisam cumprir a lei é, no mínimo, inacreditável!!! Lastimável!!! continuar lendo
parabéns pela colocação; continuar lendo
Se os órgãos de cúpula do Poder Judiciário fossem confiáveis, as autoridades não precisariam recear a sanção do projeto pelo presidente da República, porque tipos penais abertos eventualmente não vetados seriam considerados inconstitucionais. O problema é que ninguém confia na cúpula do Poder Judiciário! continuar lendo
uma verdadeira cosa nostra continuar lendo
Vivemos sob a égide do Estado Democrático de Direito. Ninguem está acima da lei. continuar lendo
Nem mesmo o Judiciário. Só que nesse momento a Suprema corte já legisla, processa, julga e executa. Tá difícil. continuar lendo
Verdade, Diego, nem mesmo o judiciário. Infelizmente estamos vivenciando uma situação teratológica na Suprema Corte. O ativismo judicial exacerbado leva a distorções conforme você cita. continuar lendo
E isso tem um poder deletério no tecido social. A sensação de insegurança jurídica, de que com os "amigos certos" dá pra perverter princípios básicos do direito não é boa para nenhum país que se deseja ser considerado como decente. Causa esta ou aquela, que favorece interesses de ocasião com tempo de meia-vida não pode fazer com que as regras do jogo mudem conforme o placar favorável. Dias nebulosos. A descrença na justiça produz a sensação de vale tudo e isso é um desserviço ao avanço civilizatório. continuar lendo